sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O FUTEBOL É FEITO DE PESSOAS


O futebol é feito por pessoas, é, portanto, feito de pessoas. Tudo o que é feito por seres humanos tem, por conseguinte, o próprio ser humano naquilo. Parece que o meio de campo embolou, não é mesmo? Então vamos clarear essa jogada e pôr a bola para frente. Pensemos num projeto arquitetônico, por exemplo, ele é idealizado e executado por pessoas, e nele está o próprio ser humano, representando uma época e seus valores, atravessando o tempo e contando histórias da humanidade, e também da desumanidade, afinal, muitas construções foram erguidas para enclausurar e arrancar a humanidade das pessoas. Então pensemos nas arenas romanas, construções erguidas para entreter o povo com jogos, com guerreiros que se digladiavam entre si e muitas vezes enfrentavam feras. Por sua vez, o povo (a plateia, a torcida) se distraía e se entretinha com os combates, enquanto os imperadores e nobres governavam distribuindo migalhas de seus camarotes. Eis a fórmula humana: amálgama de arte, entretenimento, diversão, brutalidade, disputa e corrupção. Há ainda dois elementos fundamentais que não podem deixar de ser escalados para compor tal fórmula: política e religião.
Percebem como esse recorte datado de antes de Cristo é bem semelhante ao jovem ludopédio de pouco mais de cem anos? A começar pelas divisões dos estádios de futebol – hoje também conhecidos como arenas –, com seus espaços mais ou menos privilegiados e ocupados por quem tem mais ou menos prestígio, respectivamente. Dentro de campo, um jogo que encanta e conta histórias que refletem a própria humanidade. Da lealdade à maldade, do fair play à violência, da honestidade à corrupção, tudo acontece aparentemente dentro de campo, mas, ao mesmo tempo em que inspira, também reflete a plateia, reflete a própria vida em sociedade. Poderíamos narrar um sem-número de histórias encantadoras e desgraçadas, que envolvem o futebol, para ilustrar como esse jogo feito por pessoas é, na verdade, a materialização delas, de seus anseios e devaneios. Mas isso levaria este texto para a prorrogação e para uma cobrança de pênaltis infinita, pois são histórias que abarrotam arenas e não finalizaríamos nunca essa partida. Então selecionaremos alguns highlights para demonstrar encantos e desgraças do ser humano, metaforizados de forma lúdica ao longo do campeonato da vida.
A partir daqui, chamarei o jogo para mim, é hora de aparecer o talento individual, troco a primeira do plural desse discurso pela primeira do singular e assumo a responsabilidade da derrota, mas dividirei com os leitores-torcedores os louros da vitória se ela vier ao apito-ponto-final.
Começarei ilustrando os ápices dos encantos e das desgraças narrando um episódio ocorrido com o Sport Club do Recife, clube do qual sou torcedor. Em 2008, o Sport foi campeão da Copa do Brasil de forma magistral, tendo eliminado gigantes do futebol brasileiro, como Internacional – RS, Palmeiras – SP, Vasco – RJ e sendo campeão em cima do Corinthians – SP. No ano seguinte, jogou brilhantemente a primeira fase da Libertadores da América, passando a fase de grupos como primeiro colocado, inclusive vencendo o, até então, campeão daquela competição, a LDU, dentro e fora de casa. Parou na fase seguinte, nas oitavas de final, sendo eliminado nos pênaltis pelo Palmeiras. No final do mesmo ano, em 2009, foi rebaixado, como lanterna, da Série A do Campeonato Brasileiro. Jogou a Série B nos dois anos seguintes. Nesse ínterim, 2010-2011, apareceu um pai de santo afirmando que tal crise se instalara no clube por conta de uma dívida não sanada, o Sport teria prometido um búfalo ao babalorixá, ainda em 2008, caso a equipe conquistasse a Copa do Brasil. A diretoria do Sport, por via das dúvidas (?), decide então pagar R$ 5.000,00 ao pai de santo para que a “dívida” com os orixás pudesse ser sanada, o babalorixá comprou um boi malhado, por menos da metade do valor recebido, depois de ter consultado os orixás e, segundo tal consulta, eles terem permitido aquele boi em vez de um búfalo. Hilário, não? Interesses espirituais e financeiros numa mesma oferenda. Fato é que o Sport retornou à elite do futebol brasileiro em 2012. Misticismos, crenças, religiões e superstições fazem parte indissociável do futebol. “No creo em brujas, pero que las hay, las hay”.

O futebol é feito de crenças. Crenças são produzidas por pessoas. 

Os próximos episódios narram uma desgraça inerente ao ser humano, que é transmitida às suas instituições: a corrupção. Ela aparece no futebol de forma semelhante àqueles imperadores e nobres romanos das arenas, mas sob outra alcunha, eles são conhecidos como cartolas. Esses mancham o futebol com politicagem, subornos, compra de integridade, associações escusas e todo tipo de irregularidade que se possa imaginar. Vamos aos fatos. O Clube de Regatas Flamengo foi o campeão brasileiro de 1980 em cima do Clube Atlético Mineiro. Eram dois timaços, não há como negar. Porém, o jogo foi marcado por um nome: José. José de Assis Aragão, o árbitro da partida, expulsou na metade do segundo tempo o craque do Atlético, Reinaldo, por ter reclamado de um impedimento mal marcado e retardado a cobrança de tal impedimento, Reinaldo já havia marcado dois gols na partida, que se encontrava com um placar de 2x2, favorável aos atleticanos, que poderiam se consagrar campeões, diante de mais de 150.000 torcedores rubro-negros em pleno Maracanã, com aquele empate. Resumo da ópera: com um jogador a mais, o Flamengo fez o terceiro gol e levou a taça daquele ano. Esse ainda não é o episódio mais emblemático que pretendo usar para ilustrar a corrupção no futebol, mas tem o mesmo confronto: CRF x CAM. O ano foi o subsequente, 1981, agora pela Taça Libertadores da América, torneio que seria vencido pelo Flamengo naquele ano. Entretanto, antes de se sagrar campeão da América, o clube carioca tinha novamente o rival mineiro, o mesmo sobre o qual havia sido campeão nacional no ano anterior, com a polêmica expulsão de Reinaldo, como foi narrada acima, e de mais dois jogadores atleticanos no final daquela partida com o Flamengo já em vantagem no placar. É de expulsão que estamos falando? Pois bem, a reedição do jogo do ano anterior entre cariocas e mineiros, agora por um campeonato continental, também foi marcada por um nome, mais um cidadão José. Dessa vez o árbitro era José Roberto Wright, que aos 37 minutos de jogo já havia expulsado cinco jogadores do Atlético Mineiro, isso mesmo, cinco!, a sequência de cartões vermelhos teve início novamente com Reinaldo, como coincidentemente ocorrera um ano antes; com apenas seis jogadores em campo do lado mineiro, Wright encerrou a partida e decretou a vitória dos cariocas, que avançaram aquela etapa e foram campeões do torneio. Dizem por aí que Wright é flamenguista. E agora, José? E eu nem adentrarei na seara de 1987, pois esse é um caso encerrado.

O futebol é feito de corrupções. Corrupções são produzidas por pessoas.

Agora eu gostaria de trazer um episódio ocorrido na Copa do Mundo de 1986. Copa vencida pela Argentina, com uma belíssima atuação do polêmico Diego Armando Maradona, e, em se tratando de Don Diego, a polêmica é praxe. Porém essa polêmica é justificável dentro dos trâmites políticos, futebolísticos e, naturalmente, humanos. Nas quartas de final daquela Copa, a Seleção da Argentina enfrentou a Seleção da Inglaterra num jogo histórico. 2x1 para a Argentina, que avançou de fase com um golaço de Maradona, que parte do meio de campo driblando todos os adversários à sua frente, e com um gol de mão, que foi validado, marcado também por Maradona, aliás, segundo o próprio Diego, marcado por Deus, é o famoso gol “la mano de Dios”. Por que essa irregularidade, um gol de mão, seria justificável naquela situação específica? Basta retornar a 1982, quatro anos antes daquela partida, e resgatar um episódio político, entre Reino Unido e Argentina, que envolvia o controle de um arquipélago conhecido pelos argentinos como Ilhas Malvinas e pelos ingleses como Falklands, o conflito teve como vencedores os ingleses, o que acarretou um mal-estar diplomático entre as duas nações até hoje. Apenas quatro anos depois de um conflito bélico de interesses políticos, um conflito futebolístico de caráter mundial traria de volta toda aquela tensão entre os dois países. Tratava-se de soberania, demarcação territorial, orgulho. E o campo de futebol é uma trincheira para todos esses requisitos. Maradona após a partida simplesmente decretou e dedicou aquela vitória às Malvinas. Portanto, gol de mão justo como a mão que empunha armas para reivindicar soberania. Mesmo que seja essa a mão de Deus.

O futebol é feito de guerras. Guerras são produzidas por pessoas.

Por fim, já nos acréscimos textuais, faço questão de colocar em súmula o recente trágico episódio ocorrido com a Associação Chapecoense de Futebol. Um acidente aéreo que dizimou quase uma delegação inteira que se encaminhava para a Colômbia para disputar a final de uma competição continental, a Copa Sul-Americana. Por ganância do piloto, também dono da companhia aérea, numa tentativa de conter gastos visando apenas ao próprio lucro, a aeronave foi abastecida com o mínimo de combustível para o trajeto, o piloto não contava com a possibilidade de precisar de mais combustível e tal possibilidade se concretizou quando a aeronave não obteve permissão para pousar e precisou sobrevoar por mais tempo. Sem combustível, queda. Tragédia. Tal situação irmanou brasileiros e colombianos de uma forma jamais vista. O Club Atlético Nacional S.A., ou simplesmente Nacional de Medellín, abriu mão do título e da premiação da competição num gesto de solidariedade. O mundo se solidarizou. Tragédias podem ser provocadas por pessoas e suas ganâncias (e geralmente são), como guerras, conflitos ideológicos, desacordos políticos, incompatibilidades religiosas, mas a solidariedade humana se sobrepõe ao estado de beligerância e de interesses individuais em situações como essa, pois na tragédia, independente de país, etnia, cultura ou das cores das camisas e das bandeiras, somos todos pessoas. O futebol é confronto, é disputa, envolve interesses particulares e coletivos, mas, sobretudo, é superação. A humanidade é assim. Contraditória. Competitiva. Cria regras e as quebra. É cheia de virtudes e defeitos concomitantes. Não vive para perder, mas se perde em viver.

O futebol é feito de pessoas, pois ele é feito por pessoas.