O futebol é feito por pessoas, é, portanto, feito
de pessoas. Tudo o que é feito por seres humanos tem, por conseguinte, o próprio
ser humano naquilo. Parece que o meio de campo embolou, não é mesmo? Então
vamos clarear essa jogada e pôr a bola para frente. Pensemos num projeto
arquitetônico, por exemplo, ele é idealizado e executado por pessoas, e nele
está o próprio ser humano, representando uma época e seus valores, atravessando
o tempo e contando histórias da humanidade, e também da desumanidade, afinal,
muitas construções foram erguidas para enclausurar e arrancar a humanidade das
pessoas. Então pensemos nas arenas romanas, construções erguidas para entreter
o povo com jogos, com guerreiros que se digladiavam entre si e muitas vezes
enfrentavam feras. Por sua vez, o povo (a plateia, a torcida) se distraía e se
entretinha com os combates, enquanto os imperadores e nobres governavam
distribuindo migalhas de seus camarotes. Eis a fórmula humana: amálgama de
arte, entretenimento, diversão, brutalidade, disputa e corrupção. Há ainda dois
elementos fundamentais que não podem deixar de ser escalados para compor tal
fórmula: política e religião.
Percebem como esse recorte datado de antes de
Cristo é bem semelhante ao jovem ludopédio de pouco mais de cem anos? A começar
pelas divisões dos estádios de futebol – hoje também conhecidos como arenas –,
com seus espaços mais ou menos privilegiados e ocupados por quem tem mais ou
menos prestígio, respectivamente. Dentro de campo, um jogo que encanta e conta
histórias que refletem a própria humanidade. Da lealdade à maldade, do fair
play à violência, da honestidade à corrupção, tudo acontece aparentemente
dentro de campo, mas, ao mesmo tempo em que inspira, também reflete a plateia,
reflete a própria vida em sociedade. Poderíamos narrar um sem-número de
histórias encantadoras e desgraçadas, que envolvem o futebol, para ilustrar
como esse jogo feito por pessoas é, na verdade, a materialização delas, de seus
anseios e devaneios. Mas isso levaria este texto para a prorrogação e para uma
cobrança de pênaltis infinita, pois são histórias que abarrotam arenas e não
finalizaríamos nunca essa partida. Então selecionaremos alguns highlights para
demonstrar encantos e desgraças do ser humano, metaforizados de forma lúdica ao
longo do campeonato da vida.
A partir daqui, chamarei o jogo para mim, é hora de
aparecer o talento individual, troco a primeira do plural desse discurso pela
primeira do singular e assumo a responsabilidade da derrota, mas dividirei com
os leitores-torcedores os louros da vitória se ela vier ao apito-ponto-final.
Começarei ilustrando os ápices dos encantos e das
desgraças narrando um episódio ocorrido com o Sport Club do Recife, clube do qual sou torcedor. Em 2008, o
Sport foi campeão da Copa do Brasil de forma magistral, tendo eliminado
gigantes do futebol brasileiro, como Internacional – RS, Palmeiras – SP, Vasco
– RJ e sendo campeão em cima do Corinthians – SP. No ano seguinte, jogou brilhantemente
a primeira fase da Libertadores da América, passando a fase de grupos como
primeiro colocado, inclusive vencendo o, até então, campeão daquela competição,
a LDU, dentro e fora de casa. Parou na fase seguinte, nas oitavas de final,
sendo eliminado nos pênaltis pelo Palmeiras. No final do mesmo ano, em 2009,
foi rebaixado, como lanterna, da Série A do Campeonato Brasileiro. Jogou a
Série B nos dois anos seguintes. Nesse ínterim, 2010-2011, apareceu um pai de
santo afirmando que tal crise se instalara no clube por conta de uma dívida não
sanada, o Sport teria prometido um búfalo ao babalorixá, ainda em 2008, caso a
equipe conquistasse a Copa do Brasil. A diretoria do Sport, por via das dúvidas
(?), decide então pagar R$ 5.000,00 ao pai de santo para que a “dívida” com os
orixás pudesse ser sanada, o babalorixá comprou um boi malhado, por menos da
metade do valor recebido, depois de ter consultado os orixás e, segundo tal
consulta, eles terem permitido aquele boi em vez de um búfalo. Hilário, não?
Interesses espirituais e financeiros numa mesma oferenda. Fato é que o Sport
retornou à elite do futebol brasileiro em 2012. Misticismos, crenças, religiões
e superstições fazem parte indissociável do futebol. “No creo em brujas,
pero que las hay, las hay”.
O futebol é feito de crenças. Crenças são
produzidas por pessoas.
Os próximos episódios narram uma desgraça inerente
ao ser humano, que é transmitida às suas instituições: a corrupção. Ela aparece
no futebol de forma semelhante àqueles imperadores e nobres romanos das arenas,
mas sob outra alcunha, eles são conhecidos como cartolas. Esses mancham o
futebol com politicagem, subornos, compra de integridade, associações escusas e
todo tipo de irregularidade que se possa imaginar. Vamos aos fatos. O Clube de
Regatas Flamengo foi o campeão brasileiro de 1980 em cima do Clube Atlético
Mineiro. Eram dois timaços, não há como negar. Porém, o jogo foi marcado por um
nome: José. José de Assis Aragão, o árbitro da partida, expulsou na metade do
segundo tempo o craque do Atlético, Reinaldo, por ter reclamado de um
impedimento mal marcado e retardado a cobrança de tal impedimento, Reinaldo já
havia marcado dois gols na partida, que se encontrava com um placar de 2x2,
favorável aos atleticanos, que poderiam se consagrar campeões, diante de mais
de 150.000 torcedores rubro-negros em pleno Maracanã, com aquele empate. Resumo
da ópera: com um jogador a mais, o Flamengo fez o terceiro gol e levou a taça
daquele ano. Esse ainda não é o episódio mais emblemático que pretendo usar
para ilustrar a corrupção no futebol, mas tem o mesmo confronto: CRF x CAM. O
ano foi o subsequente, 1981, agora pela Taça Libertadores da América, torneio
que seria vencido pelo Flamengo naquele ano. Entretanto, antes de se sagrar
campeão da América, o clube carioca tinha novamente o rival mineiro, o mesmo
sobre o qual havia sido campeão nacional no ano anterior, com a polêmica
expulsão de Reinaldo, como foi narrada acima, e de mais dois jogadores
atleticanos no final daquela partida com o Flamengo já em vantagem no placar. É
de expulsão que estamos falando? Pois bem, a reedição do jogo do ano anterior
entre cariocas e mineiros, agora por um campeonato continental, também foi
marcada por um nome, mais um cidadão José. Dessa vez o árbitro era José Roberto
Wright, que aos 37 minutos de jogo já havia expulsado cinco jogadores do
Atlético Mineiro, isso mesmo, cinco!, a sequência de cartões vermelhos teve início
novamente com Reinaldo, como coincidentemente ocorrera um ano antes; com apenas
seis jogadores em campo do lado mineiro, Wright encerrou a partida e decretou a
vitória dos cariocas, que avançaram aquela etapa e foram campeões do torneio.
Dizem por aí que Wright é flamenguista. E agora, José? E eu nem adentrarei na
seara de 1987, pois esse é um caso encerrado.
O futebol é feito de corrupções. Corrupções são
produzidas por pessoas.
Agora eu gostaria de trazer um episódio ocorrido na
Copa do Mundo de 1986. Copa vencida pela Argentina, com uma belíssima atuação
do polêmico Diego Armando Maradona, e, em se tratando de Don Diego, a polêmica
é praxe. Porém essa polêmica é justificável dentro dos trâmites políticos,
futebolísticos e, naturalmente, humanos. Nas quartas de final daquela Copa, a
Seleção da Argentina enfrentou a Seleção da Inglaterra num jogo histórico. 2x1
para a Argentina, que avançou de fase com um golaço de Maradona, que parte do
meio de campo driblando todos os adversários à sua frente, e com um gol de mão,
que foi validado, marcado também por Maradona, aliás, segundo o próprio Diego,
marcado por Deus, é o famoso gol “la mano de Dios”. Por que essa
irregularidade, um gol de mão, seria justificável naquela situação específica?
Basta retornar a 1982, quatro anos antes daquela partida, e resgatar um
episódio político, entre Reino Unido e Argentina, que envolvia o controle de um
arquipélago conhecido pelos argentinos como Ilhas Malvinas e pelos ingleses
como Falklands, o conflito teve como vencedores os ingleses, o que
acarretou um mal-estar diplomático entre as duas nações até hoje. Apenas quatro
anos depois de um conflito bélico de interesses políticos, um conflito
futebolístico de caráter mundial traria de volta toda aquela tensão entre os
dois países. Tratava-se de soberania, demarcação territorial, orgulho. E o
campo de futebol é uma trincheira para todos esses requisitos. Maradona após a
partida simplesmente decretou e dedicou aquela vitória às Malvinas. Portanto,
gol de mão justo como a mão que empunha armas para reivindicar soberania. Mesmo
que seja essa a mão de Deus.
O futebol é feito de guerras. Guerras são
produzidas por pessoas.
Por fim, já nos acréscimos textuais, faço questão
de colocar em súmula o recente trágico episódio ocorrido com a Associação
Chapecoense de Futebol. Um acidente aéreo que dizimou quase uma delegação
inteira que se encaminhava para a Colômbia para disputar a final de uma
competição continental, a Copa Sul-Americana. Por ganância do piloto, também
dono da companhia aérea, numa tentativa de conter gastos visando apenas ao
próprio lucro, a aeronave foi abastecida com o mínimo de combustível para o
trajeto, o piloto não contava com a possibilidade de precisar de mais
combustível e tal possibilidade se concretizou quando a aeronave não obteve
permissão para pousar e precisou sobrevoar por mais tempo. Sem combustível,
queda. Tragédia. Tal situação irmanou brasileiros e colombianos de uma forma
jamais vista. O Club Atlético Nacional S.A., ou simplesmente Nacional de
Medellín, abriu mão do título e da premiação da competição num gesto de
solidariedade. O mundo se solidarizou. Tragédias podem ser provocadas por
pessoas e suas ganâncias (e geralmente são), como guerras, conflitos
ideológicos, desacordos políticos, incompatibilidades religiosas, mas a
solidariedade humana se sobrepõe ao estado de beligerância e de interesses
individuais em situações como essa, pois na tragédia, independente de país,
etnia, cultura ou das cores das camisas e das bandeiras, somos todos pessoas. O
futebol é confronto, é disputa, envolve interesses particulares e coletivos,
mas, sobretudo, é superação. A humanidade é assim. Contraditória. Competitiva.
Cria regras e as quebra. É cheia de virtudes e defeitos concomitantes. Não vive
para perder, mas se perde em viver.
O futebol é feito de pessoas, pois ele é feito por
pessoas.
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